Dia desses alguém me fez essa pergunta. Pensei um pouco no assunto e resolvi escrever sobre isso.
Carl Schmitt é o maior canalha da filosofia pelo conjunto da obra e o resultado das suas teorias sendo aplicadas pelo nazismo. A briga pelo posto de líder do lado negro da força é acirrada, com Carl Schmitt, Thomas Malthus e John Locke disputando o pódio.
Se você discorda, conte nos comentários qual seria a sua lista e o seu primeiro colocado!
Segundo Diogo Sardinha, autor do texto: “A filosofia e os seus cães: dos cínicos à canalha” a definição de canalha estaria historicamente e etimologicamente ligada à insolência:
“Ao longo de sua história, a filosofia se mostrou sobejamente avessa à insolência e à selvajaria. No entanto, quem determina as fronteiras desses espaços, as linhas para lá das quais uma conduta se torna intolerável? Na sua antropologia, típica do século das luzes, Kant critica o que considera ser o caráter selvagem da populaça. Para ilustrar o que pretende dizer, ele recorre à expressão francesa canaille du peuple. Bem mais próximo de nós, Foucault se interessa pela figura antiga do filósofo cínico, que ele apresenta como um insolente à vista dos códigos da cidade, a qual acaba por excluí-lo. Ora, a raiz etimológica de canaille e de cínico é a mesma: o cão. A partir daqui, várias perguntas se insinuam: que relação existe entre a canalha, isto é, os cães do povo; e os cínicos, cães da filosofia? Se o cínico é filósofo, significa que a animalidade é interior à filosofia? As respostas a essas interrogações se tornam mais difíceis quando se compreende que as tensões entre seus elementos são mais complexas do que se julgava.”
Dióges o Cínico – O filósofo mais insolente de todos
Se aceitarmos as afirmações acima, provavelmente poderíamos eleger Diógenes, o Cínico como o maior canalha de todos.
Se por outro lado, pensarmos em canalha como sendo aquele que age de má fé, com a intensão de prejudicar os outros, a resposta é mais complexa.
Quem escreveria uma filosofia, uma teoria, ou desenvolveria um projeto de vida com esse propósito?
É importante definir melhor o que seria canalhice. Julio Pompeu e Clóvis de Barros Filho, autores de “Somos todos canalhas: filosofia para uma sociedade em busca de valores” (Casa da Palavra), listam em uma matéria do jornal O Globo as características mais típicas dos canalhas:
O que faz uma pessoa ser canalha? Qual o seu perfil?
É o egoísta, o autocentrado. Aquele que tudo diz “eu, eu e eu”. Um exemplo é o aluno que quando tira 8 na prova se acha muito bom, mas, quando tira 4, culpa o “babaca” do professor. As consequências positivas são mérito dele, já nas negativas, o outro é o culpado.Você pode dar mais exemplos de canalhice? Quais são as mais comuns?
Canalha é aquele que estaciona em vaga de deficiente sem ser deficiente, mesmo que seja “rapidinho”. Uma canalhice que as pessoas fazem de conta que não percebem: no ônibus ou no metrô quando não cedem lugar àqueles com maior necessidade. A canalhice pequena, a cotidiana, aquela que ninguém reclama muito e finge não perceber, essa é a que pega.
A canalhice é definida como um conjunto de atitudes pessoais, pelo que podemos ver.
Então, o filósofo canalha seria ele mesmo um canalha, embora seu pensamento teórico e obra possam não ser, ou ele é autor de uma tese canalha?
Jean Jacques Russeau – O Bom Canalha
Jean Jacques Rousseau, por exemplo seria considerado um canalha por ter abandonado os filhos, embora ironicamente tenha sido autor de uma obra exemplar sobre educação, igualdade e outros temas fundamentais. Ele inspirou as grandes revoluções do século XVIII.
Provavelmente filósofo que produz uma tese canalha tentaria não ser visto como tal. Um pensamento com viés destrutivo e maligno tentaria destruir não o mundo, mas um grupo específico. Para isso seria necessário convencer o restante da população, ou pelo menos gente o o suficiente de que a destruição é necessária. Nessa categoria poderíamos incluir todos os pensadores racistas, os ideólogos do nazismo e das teses de supremacia racial, e aqueles que criaram obras que criminalizaram parte da população, com base em um pensamento retrógrado.
Lombroso, para citar apenas um nome, seria um grande canalha. A tese dele era a de que, a partir de características físicas de alguns indivíduos, em especial os mestiços, seria possível determinar sua pré-disposição à conduta criminosa. Medindo formato e tamanho das orelhas e nariz seria possível identificar um criminoso em potencial.
Cesare Lombroso – O criminologista malvado
García-Pablos de Molina infere que:
De acordo com seu pensamento, o delinquente padece de uma série de estigmas degenerativos comportamentais, psicológicos e sociais (fronte esquiva e baixa, grande desenvolvimento dos arcos supraciliares, assimetrias cranianas, fusão dos ossos atlas e occipital, grande desenvolvimento das maçãs do rosto, orelhas em forma de asa, tubérculo de Darwin, uso frequente de tatuagens, notável insensibilidade à dor, instabilidade afetiva, uso frequente de determinado jargão, altos índices de reincidência etc.
As características básicas do criminoso descritas por Lombroso são notavelmente o resultado de uma mistura entre “raças”, e estão ausentes no típico padrão europeu. Ou seja, o mestiço visto principalmente nas classes mais pobres. Seria perfeitamente possível creditar a ele um “apartheid criminológico”
Porém Cesare Lombroso foi um psiquiatra, cirurgião, higienista, criminologista, antropólogo e cientista italiano. Ele não era um filósofo propriamente.
Nietzche, esse sim um filósofo, é autor de uma obra polêmica. Muitos o consideram um canalha, ou autor de uma obra canalha.
Friedrich Nietzche – O Polêmico
Decerto Nietzsche não é visto com bons olhos por muitos, porque a filosofia daquele bigode em forma de gente aplicada ao âmbito público é uma da diferença e de um ascetismo constante para a superação de si. O desdém aos baixos faz o papel filosófico do criticar/zombar, para que se superem ou que fiquem em seus lugares de servos. Também é associado, não sem controvérsias, ao nazismo (a corda da aventura seria o nazismo, o super-homem seria uma raça pura e predestinada e o desdém se voltaria aos judeus e aos fracos). Talvez se empolgasse com Hitler, como que por Napoleão, mas provavelmente fugiria ao saber das atrocidades vilãs. Porque pode-se dizer que é culpa de Nietzsche ter despejado momentos de ódio na escrita, mas essa leitura não é uma acabada. Não se vê em Nietzsche uma vontade filosófica que se ponha como boa ou má. Há vontades de poder e isto está além do bem e do mal. A verdade é subjetiva e humana. Se inventa, se processa, conforme vontades humanas. E o humano precisa ser também malicioso o suficiente para não ser prejudicado. Então não se espera/exige somente do outro que não o prejudique (porque em diversos momentos isto será contrário à vontade do outro), mas se tem malícia para não ser prejudicado. Essa competição de bem e mal, de versões, é que se constrói abaixo das vontades de poder e Zaratustra está “na montanha”.
É difícil categorizar o autor usando um conceito binário de bem e mal. Embora ele seja sempre um nome lembrado por evocar sentimentos fortes e muitas vezes negativos, Nietzche foi provavelmente muito mais um provocador do que um canalha ou o autor de um ensaio mau.
Carl Schmitt – O Jurista do Nazismo
Grande candidato a Filósofo canalha, Carl Schmitt foi membro do Partido Nazista por livre escolha e afinidade ideológica, além de filósofo, jurista, político e professor universitário alemão. Um maiores e mais controversos especialistas em direito constitucional e internacional da Europa do século XX, ao contrário de Rousseau, Schmitt não produziu uma obra que estivesse moralmente acima do próprio autor.
Schmitt propôs o conceito de soberania como o poder de decidir a instauração do Estado de Exceção para guardar a ordem.
Segundo Giorgio Agamben, a conceitualização de Schmitt para “Estado de Exceção” como pertencente ao conceito essencial de soberania incluiu fim inclusive ao direito à vida. Isso possibilitava a selvageria em nome da lei e da ordem. Os campos de concentração nazistas são uma variação da interpretação jurídica desse autor.
Após a II Guerra Mundial, Schmitt passou, segundo Günter Frankenberg, por um processo de “autodesnazificação mascarada” , revendo parte de sua obra e buscando se desvencilhar do regime nazista.
O lado negro da força, ou a lista de pensadores que entrou para a história como “autores maus”, conta ainda com outros nomes de calibre:
Thomas Malthus defendeu meios como a guerra e as doenças a fim de controlar o crescimento da população pobre, bem como a abolição de todo os tipos de ajuda aos menos afortunados.
Nicolau Maquiavel Escreveu “O Príncipe”, equivocadamente visto por muitos como um ensaio imoral de política.
Arthur Schopenhauer desenvolveu um sistema metafísico ateu e ético que questionava as bases do cristianismo e se enquadrava numa corrente de pessimismo filosófico.
Thomas Hobbes que propunha o absolutismo como forma de controlar os impulsos negativos da humanidade.
De todo o quarteto, Malthus é o único que faz jus à má fama, o resto foi injustiçado por defender temas polêmicos e foram lidos de forma enviesada. Malthus não via podia conceber a possibilidade de que toda a população desfrutasse de bem-estar e para ele a desigualdade entre os seres humanos era inevitável.
John Locke – O Canalha “Bonzinho”
John Locke pensava de forma bem parecida. Além de também naturalizar a desigualdade, ele igualmente propunha o fim de qualquer tipo de auxílio aos pobres, e ia além, sugerindo trabalhos forçados. Mesmo assim, Locke entrou para a história no rol dos “bons filósofos”.
A briga pelo posto de filósofo mais canalha tem uma briga boa, com Schmitt, Malthus e John Locke disputando o pódio informal.
Bibliografia
Canalhice é assunto de livro lançado por dupla de filósofos | Gente Boa – O Globo
PABLOS DE MOLINA, Antonio Garcia. Criminologia: una introducción e sus fundamentos teóricos
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro
https://www.justificando.com/2020/08/07/nietzsche-e-a-honestidade-da-canalha/
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