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AVERRÓIS

Prof. Dr. Rodrigo Alves Correia[1]

Abu al-Walid Muhammad ibn Ahmad ibn Muhammad ibn Rushd, também conhecido como Averróis, emerge da história como uma figura de destaque. Nasceu em 14 de abril de 1126 em Córdoba, na Espanha, e faleceu em 10 de dezembro de 1198, na cidade de Marrakesh, Marrocos. Originário de uma linhagem de juristas, ele foi um estudioso multifacetado que não se limitou a uma única área de conhecimento.

Esse admirador fervoroso e intérprete apaixonado de Aristóteles desempenhou um papel crucial na disseminação do pensamento aristotélico no mundo islâmico e, posteriormente, na Europa. Sua influência foi profunda e sua abordagem filosófica revelou-se uma intrincada fusão de elementos aristotélicos com matizes platônicas.

No contexto religioso, ele ofereceu uma interpretação única do Corão, defendendo a existência de verdades óbvias para o povo comum, outras de natureza mística para teólogos e até verdades científicas para filósofos. Quando essas perspectivas entravam em conflito, ele advogava pela interpretação alegórica dos textos sagrados.

Uma das suas contribuições mais desafiadoras foi a defesa da teoria da dupla verdade, onde algo poderia ser considerado verdadeiro tanto sob a ótica da fé quanto da razão, mesmo que essas perspectivas se contradissessem. Essa visão audaciosa lançou luz sobre as complexas interações entre a religião e o pensamento racional.

Além de suas conquistas filosóficas, ele também se destacou no campo da medicina, deixando uma marca duradoura nessa disciplina. Sua abordagem científica e sua busca incessante por compreender o funcionamento intricado do corpo humano refletiam seu compromisso inabalável com a investigação rigorosa.

Mas ele não foi apenas um pensador solitário; ele participou ativamente dos debates intelectuais de sua época. Sua contribuição fundamental foi na tentativa de reconciliar questões teológicas e filosóficas, buscando incansavelmente um equilíbrio delicado entre a fé e a razão.

Em meio a um período de intensas disputas políticas e culturais, esse notável pensador navegou pelas águas turbulentas da história, enriquecendo o pensamento humano enquanto era vítima de perseguições religiosas. Sua influência continua a ecoar e seu legado inspira aqueles que buscam desvendar as complexas interações entre diferentes esferas do conhecimento e da crença.

O pensamento de Averróis

O caminho de Averróis foi marcado por uma audaciosa tentativa de harmonizar fé e razão. Ele via na filosofia a missão de interpretar e ampliar as verdades reveladas no Alcorão. A base dessa abordagem residia na ideia de que a investigação racional representava a continuação lógica e histórica da doutrina presente no Alcorão. Portanto, a educação religiosa deveria aprofundar e expandir essa investigação até torná-la redundante. Isso tinha como objetivo manter um valor prático e ético acessível às massas menos instruídas.

No entanto, para as elites intelectuais, que eram influenciadas pela filosofia e pela ciência, Averróis propunha uma perspectiva diferente. Ele acreditava que a religião desempenhava um papel político, ou seja, contribuía para estabelecer os princípios éticos essenciais para a convivência civil. As pessoas comuns, frequentemente dominadas por paixões destrutivas e incapazes de compreendê-las e controlá-las, só poderiam aderir a esses princípios quando motivadas por recompensas e punições divinas. Por outro lado, os intelectuais tinham a capacidade de dominar essas paixões e aderir livremente a esses princípios.

Averróis se opunha à visão de Algazali, um teólogo islâmico que viveu entre 1050-1111. Algazali afirmava a superioridade do espírito religioso islâmico sobre outras formas de fé e sobre a ciência. Averróis defendia a primazia da razão sobre qualquer tipo de fé.

O impacto da filosofia de Averróis e sua interpretação de Aristóteles teve o sentido de subordinar a fé à razão e a contemplação à ação, no que diz respeito à ação jurídica do Estado. Essa abordagem desafiou as fronteiras convencionais entre fé e razão, deixando uma marca indelével na história do pensamento ocidental.

Averrois e as duas verdades

Sua paixão por Aristóteles se manifestou em comentários profundos sobre a “Metafísica” aristotélica, originalmente escritos em árabe, mas posteriormente traduzidos para o latim, tornando-se uma valiosa contribuição para a Escolástica. No entanto, seu legado não se limitou a isso. Ele também produziu uma obra notável intitulada “Destruição da Destruição,” uma resposta eloquente às críticas do teólogo muçulmano Al-Ghazali à filosofia e aos filósofos.

Mas aqui está o ponto realmente explosivo: Averróis argumentou que poderia haver duas verdades distintas para uma mesma proposição. Algo poderia ser verdadeiro tanto do ponto de vista da fé quanto do ponto de vista da razão, mesmo que as duas perspectivas entrassem em contradição. Isso lançou luz sobre as complexas interações entre religião e pensamento racional. A ideia de que essas verdades poderiam entrar em conflito levaria à interpretação alegórica dos textos religiosos e literal dos fatos.

Al-Ghazali, conforme visto anteriormente, defendia com fervor a supremacia absoluta da fé com base em uma visão mística e voluntarista da divindade. Para ele, o mundo carecia de causas estáveis e necessárias, não seguia uma ordem verdadeira, sendo tudo contingente e emanado de Deus. No entanto, Deus, segundo Al-Ghazali, não era um déspota, mas um governante justo que estabelecia leis justas e estáveis.

Em contrapartida, Averróis via o mundo como um texto divino a ser decifrado. Para ele, a filosofia e a ciência eram as chaves para desvendar seu significado mais profundo. Era como se enxergasse a construção do mundo como um projeto racional benevolente, uma verdadeira “engenharia divina.”

A jornada intelectual de Averróis o levava a uma premissa fundamental: a ciência das coisas sobrenaturais deveria ser reduzida à ciência das coisas naturais, e a teologia e a metafísica deveriam se submeter à física. Sua filosofia era centrada na valorização do que era natural.

Grande admirador de Aristóteles, “O Comentador” argumentava que as divergências entre filósofos e teólogos frequentemente decorriam mais de interpretações conflitantes do que de princípios fundamentais irreconciliáveis. Em questões de desacordo, ele tendia a apoiar as posições dos filósofos, sustentando que estes fundamentavam suas crenças exclusivamente na razão.

Ele acreditava firmemente na harmonia entre filosofia e religião, visto que ambas compartilhavam o propósito de buscar e ensinar a verdade. Em situações de discordância, ele defendia a interpretação racional dos textos religiosos, reconhecendo que a verdade era uma só, a verdade da razão. As verdades religiosas, presentes no Alcorão, eram símbolos imperfeitos a serem interpretados para que até mesmo os mais simples e ignorantes pudessem acessar a única verdade sistematizada pela filosofia através de Aristóteles.

A devoção de Averróis a Aristóteles também se manifestava em sua defesa da tese da eternidade do mundo. Ele argumentava que o primeiro motor e os motores subsequentes não eram causas eficientes, mas causas finais, conectando-se por meio de finalidade. Essa visão transformava a física aristotélica em uma espécie de dogma. Como resultado, Averróis sustentava que o mundo era eterno, desprovido de uma origem, em contraste com a visão teológica da criação e a proposta de emanação de Avicena.

A teoria das duas verdades provocou debates intensos sobre a natureza da verdade e a autoridade das Escrituras religiosas. Como poderia algo ser verdadeiro no contexto religioso, mas falso no contexto racional? Sugeriu-se a interpretação alegórica dos textos religiosos em caso de conflito, abrindo uma janela para a interpretação filosófica.

Essa abordagem desafiadora não apenas moldou o pensamento islâmico, mas também deixou uma marca indelével no cristianismo e na filosofia europeia subsequente. Figuras como Santo Tomás de Aquino se dedicaram a encontrar maneiras de reconciliar a fé cristã com o pensamento aristotélico, que aparentemente estavam em desacordo.

Duas verdades e o Estado Laico

Hoje, nas sociedades contemporâneas, a separação entre religião e estado se tornou um princípio fundamental. Esta separação, muitas vezes enraizada em sistemas democráticos e seculares, busca garantir que as instituições governamentais sejam independentes de influências religiosas diretas e, ao mesmo tempo, garantir a liberdade religiosa dos cidadãos.

A questão das duas verdades, levantada por Averróis, ecoa nesse contexto. Ela nos lembra da importância de reconhecer que a verdade pode ser percebida de maneiras diferentes por diferentes indivíduos, com base em suas crenças pessoais e em sua razão. Essa perspectiva enfatiza a necessidade de um espaço para o diálogo intercultural e inter-religioso, onde diferentes visões de mundo possam coexistir e serem respeitadas.

A separação entre religião e estado, como observada na contemporaneidade, é uma resposta às lições aprendidas ao longo da história. Ela visa evitar conflitos religiosos que podem surgir quando a religião exerce um controle direto sobre o governo. Ao mesmo tempo, protege a liberdade religiosa dos indivíduos, permitindo que eles pratiquem sua fé sem interferência governamental.

No entanto, essa separação também gera debates e desafios. Como encontrar um equilíbrio entre a proteção da liberdade religiosa e a promoção da igualdade e da justiça para todos? Como garantir que as políticas governamentais sejam sensíveis às preocupações e valores religiosos dos cidadãos?

A questão das duas verdades levantada por Averróis nos lembra que a verdade pode ser multifacetada, e a separação entre religião e estado nos desafia a criar sociedades onde a diversidade de crenças seja respeitada e a liberdade religiosa seja protegida. A busca por esse equilíbrio é uma jornada contínua que molda as sociedades contemporâneas e nos lembra da complexidade inerente à interação entre fé, razão e governo.

Direito e política em Averróis

Quando Averróis aborda as tramas entre teologia e filosofia, ele se lança em um labirinto onde a lei divina e a lei humana dançam em uma coreografia complexa. Pode o homem, movido por seu arbítrio, moldar as leis do mundo ao sabor de sua vontade? Será que as leis divinas podem ser ignoradas na tessitura da vida na cidade? A palavra humana possui a força suficiente para revogar decretos divinos e subverter as leis da natureza? Todas essas questões se entrelaçam, direta ou indiretamente, em suas palavras intrincadas.

Entretanto, o que desafia o autor é menos a busca por uma resolução definitiva e mais a tentativa de harmonizar visões que oscilam entre a supervalorização da lei divina e a ênfase na liberdade humana. Ele se posiciona nesse ponto de equilíbrio, permitindo que fé e razão, divino e humano, coexistam harmoniosamente em nossa vida cotidiana e na organização política.

Averróis percebe que, enquanto a teologia é guiada por um sistema enraizado em dogmas, o direito segue uma lógica menos doutrinária, aproximando-se de uma arte impregnada de prudência e raciocínio, onde a lógica exerce um papel influente. O direito árabe, em sua essência, emana da fonte que flui de Alá, através do Profeta, e não se pode ignorar o peso das palavras daqueles que se esforçam para interpretar a palavra revelada e atualizá-la. O pensador enfrenta o desafio intrincado de discernir entre o domínio da fé e o terreno da regulação social. Sem essa distinção clara, a unidade religiosa inunda todas as dimensões da vida dos fiéis, tolhendo o espaço para a interseção da política, ética e razão.

Em um mundo onde a complexidade se entrelaça com a diversidade, Averróis navega com destemor pelos mares turbulentos da ética, justiça e política. Suas palavras ecoam como uma sinfonia de pensamento, onde os acordes da fé e da razão se harmonizam em uma melodia única, desafiando-nos a compreender o intrincado tecido que une o divino e o humano, o etéreo e o terreno, em nossa jornada coletiva.

Bibliografia

ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida. São Paulo: Palas Athena, 2002.

AVERRÓIS, Discurso Decisivo sobre a Harmonia entre a Religião e a Filosofia (trad. Port. de Catarina Belo), Lisboa, 2007

BENMKHLOUF, Ali. Averróis. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2006.

BITTAR, Eduardo C. B. O aristotelismo e o pensamento árabe: Averróis e a recepção de Aristóteles no mundo medieval. REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA DO LIVRO E DA EDIÇÃO ‑ ANO XII, nº. 24 ‑ 2009, pp. 61-103

GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1998

OLIVEIRA, Paulo C. AVERRÓIS E A RELIGIÃO DO FILÓSOFO. Theoria – Revista Eletrônica de Filosofia Faculdade Católica de Pouso Alegre, (p107-114) Volume VIII – Número 19 – Ano 2016 – ISSN 1984-9052


[1] Cientista Político, Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista – UNESP FFC Campus de Marília, Professor Universitário na Faculdade Favoo (coop)

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